17 junho 2007

A procura


Todos nós procuramos paz e harmonia, pois sentimos falta disso nas nossas vidas. Todos nós queremos ser felizes; temos direito a isso. Contudo são mais as vezes em que andamos à procura da felicidade do que a alcançamos. Em certas alturas todos nós vivenciamos insatisfação nas nossas vidas – agitação, irritação, desarmonia, sofrimento. Mesmo que neste preciso instante nos sintamos livres de tais insatisfações, todos podemos recordar uma altura em que estas emoções nos afligiam ou imaginar um momento em que voltarão a ocorrer. E eventualmente todos vamos enfrentar o mistério da morte.

Além disso, não guardamos as insatisfações para nós. Partilhamo-las com os outros. A atmosfera à volta de uma pessoa infeliz é carregada, de forma que todos os que entram nessa atmosfera sentem esse peso e essa infelicidade. Desta forma as tensões individuais combinam-se para criar as da sociedade.

É este o problema básico da sociedade, a sua natureza insatisfatória. Acontecem coisas que não desejamos. Coisas que desejamos não acontecem. E ignoramos o como e o porquê deste processo, da mesma maneira que ignoramos qual é o nosso princípio e fim.

Há 25 séculos atrás, no Norte da Índia, um homem decidiu investigar este problema, o problema do sofrimento humano. Depois de anos de procura e de experimentar vários métodos, descobriu uma forma de penetrar a realidade da sua própria natureza e experienciar a verdadeira libertação do sofrimento. Ao atingir o mais alto grau de liberdade, de libertação da miséria e do conflito, devotou o resto da sua vida a ajudar os outros a fazer o mesmo, mostrando-lhes o caminho para se libertarem.

Esta pessoa – Siddhartha Gautama, conhecido como o Buda, o Iluminado, – nunca afirmou ser algo mais do que um ser humano. Como todos os grandes professores tornou-se objecto de lendas, mas não importa que histórias maravilhosas se contaram sobre as suas existências passadas, nunca em lado nenhum se disse que ele era de origem divina ou fora inspirado por um poder divino. Todas as qualidades que possuía eram qualidades humanas levadas à perfeição. Portanto, o que ele alcançou está ao alcance de qualquer ser humano que pratique como ele o fez.

O Buda não ensinou nenhuma religião ou filosofia ou sistema de pensamento. Chamava ao seu ensinamento Dharma, ou seja, a Lei, a lei da natureza. Não se interessava por dogmas ou especulações gratuitas. Em vez disso ofereceu uma solução prática e universal para um problema universal. “Agora como sempre, ensino sobre o sofrimento e a erradicação do sofrimento.” Recusou-se mesmo a discutir fosse o que fosse que não levasse à libertação do sofrimento.

Este ensinamento, insistiu, não foi algo que inventara ou que fora divinamente revelado. Era simplesmente a verdade, a realidade, que conseguiu descobrir através do seu próprio esforço, como muitas pessoas antes dele o fizeram, como muitas pessoas depois dele o farão. Não proclamou ter o monopólio da verdade.

Nem afirmou que o seu ensinamento devesse ter uma qualidade especial – nem por causa da fé que as pessoas tinham nele, nem por causa do que aparentemente fosse lógico naquilo que dizia. Pelo contrário, afirmou que era apropriado duvidar e testar aquilo que está para além da nossa experiência.

Não acredites em alguma coisa simplesmente porque a escutaste.

Não acredites em tradições simplesmente porque provêm desde há muitas gerações.

Não acredites em algo só porque é falado ou é motivo de rumor por muitos.

Não acredites em algo simplesmente porque vem escrito nos teus livros religiosos.

Não acredites em algo simplesmente porque é dito pelas tuas professoras ou anciãos.

Mas, após observação e análise quando encontrares que algo vai de acordo com a razão e é conduzível à felicidade e benefício de uma só pessoa e de todas, então aceita e vive-o.!"

- Kalama Sutra, 17:49 –

A maior autoridade é a nossa própria experiência da verdade. Nada deve ser aceite apenas pela fé. Temos de o examinar para ver se é lógico, prático, benéfico. Nem, ao ter examinado um ensinamento racionalmente é suficiente aceitá-lo como verdade intelectualmente. Para beneficiarmos da verdade, temos de a vivenciar directamente. Apenas então podemos saber que é realmente verdade. O Buda acentuava que apenas ensinava o que aprendera por conhecimento directo, e encorajava os outros a fazerem o mesmo, a tornarem-se na sua própria autoridade. “Sejam ilhas para vós mesmos, refúgios para vós mesmos, não procurem um refúgio externo. Com o Dharma como a vossa ilha, o Dharma como refúgio, não procurem outro refúgio.”

2.26. “Portanto, Ananda, sejam ilhas para vocês mesmos, refúgios para vocês mesmos, não buscando nenhum refúgio externo; com o Dhamma como a sua ilha, o Dhamma como refúgio, buscando nenhum outro refúgio. E como, Ananda, um bhikkhu é uma ilha para ele mesmo, um refúgio para ele mesmo, buscando nenhum refúgio externo; com o Dhamma como a sua ilha, o Dhamma como o seu refúgio, buscando nenhum outro refúgio? Neste caso, Ananda, um bhikkhu permanece contemplando o corpo como um corpo, ardente, plenamente consciente e com atenção plena, tendo colocado de lado a cobiça e o desprazer pelo mundo. Ele permanece contemplando as sensações como sensações ... mente como mente ... objetos mentais como objetos mentais, ardente, plenamente consciente e com atenção plena, tendo colocado de lado a cobiça e o desprazer pelo mundo. Esses bhikkhus, Ananda, que agora ou depois que eu me for, permanecerem como uma ilha para eles mesmos, como um refúgio para eles mesmos, sem nada mais como refúgio, com o Dhamma como uma ilha, o Dhamma como refúgio, sem nada mais como refúgio, eles serão para mim os bhikkhus mais eminentes dentre aqueles que têm interesse em aprender.” Mahaparinibbana Sutta

O único verdadeiro refúgio na vida, o único solo sólido sobre o qual nos podemos erguer, a única autoridade que pode realmente guiar-nos e proteger-nos é a verdade, o Dharma, a lei da natureza, vivenciada e verificada por nós. Portanto no seu ensinamento, o Buda sempre deu a maior importância à experiência directa da verdade.

O Buda não estava interessado em estabelecer uma seita ou um culto de personalidade consigo no centro. A personalidade daquele que ensina, disse, é de importância secundária comparada ao ensinamento. A um discípulo que demonstrava excessiva veneração, ele disse: “O que ganhas ao ver este corpo, que está sujeito à destruição? Aquele que vê o Dharma vê-me, aquele que me vê, vê o Dharma.”

A devoção e relação a uma pessoa, seja ela a mais santa, não é o suficiente para libertar ninguém. Não há libertação sem experiência directa da realidade. Portanto, a verdade tem a supremacia, não aquele que a diz. Todo o respeito é devido ao que diz a verdade, mas a melhor forma de demonstrar respeito é trabalhar para realizar a verdade por si mesmo.

O que o Buda ensinou foi um caminho que cada ser humano pode percorrer. Este chamou a este caminho o Nobre Caminho Óctuplo, com o sentido de uma prática com oito partes interrelacionadas. É nobre no sentido de que quem o percorre se torna num ser com nobreza de coração, uma pessoa santa, liberto do sofrimento.

É um caminho de entendimento (insight) da natureza da realidade, um caminho de verdade-realização. Para resolver os nossos problemas, temos de ver a nossa situação tal qual ela é. Temos de aprender a reconhecer a realidade superficial e aparente e também a penetrar para além das aparências de forma a perceber verdades mais subtis, até à verdade última, e finalmente vivenciar a verdade da libertação do sofrimento.

A única forma de vivenciar a verdade directamente é olhar para dentro, observar-se a si mesmo. Durante todas as nossas vidas nos acostumamos a olhar para fora. Sempre nos interessamos no que se passava lá fora, no que os outros estavam a fazer. Raramente nos interessamos por nos examinar, a nossa estrutura física e mental. Por isso permanecemos desconhecidos para nós mesmos. Nem reparamos o quanto esta ignorância nos prejudica, o quanto permanecemos escravos de forças dentro de nós de que não estamos conscientes.

Esta escuridão interna tem de desaparecer para apreendermos a verdade. Devemos penetrar a nossa natureza de forma a penetrar na natureza da existência. Assim, o caminho que o Buda indicou é um caminho de observação, de introspecção. O universo inteiro e as leis da natureza pelas quais se rege devem ser vivenciados dentro de nós. Só podem ser vivenciados dentro de nós.

O caminho é também um caminho de purificação. Investigamos a verdade sobre nós mesmos não por qualquer vã curiosidade mas sim com um objectivo definido. Ao nos observarmos, damo-nos conta pela primeira vez das nossas reacções condicionadas, dos preconceitos que obscurecem a nossa visão mental, que escondem a realidade e produzem sofrimento.

Reconhecemos as tensões internas acumuladas que nos agitam, nos deixam infelizes e percebemos que podem ser removidas. Gradualmente aprendemos a permitir que elas se dissolvam, e as nossas mentes tornam-se puras, pacíficas e felizes.

O caminho é um processo que requer uma aplicação contínua. Algumas “abertas” vão surgir, mas são o resultado de esforço continuado. É necessário avançar passo a passo; mas a cada passo os benefícios são imediatos. Não seguimos o caminho na esperança de aumentar os benefícios a gozar apenas no futuro, de alcançar um céu apenas conhecido aqui por conjectura. Os benefícios devem ser concretos, vividos, pessoais, vivenciados aqui e agora.

Acima de tudo, é um ensinamento para ser praticado. Ter simplesmente fé no Buda e nos seus ensinamentos não nos ajudará a libertar-nos do sofrimento; assim como o mero entendimento intelectual do caminho. Estes só têm valor se servirem de inspiração a pôr os ensinamentos em prática. Apenas a prática do que o Buda ensinou dará resultados concretos e mudará a nossa vida para melhor. Não é necessário sermos “budistas” para praticar este caminho. Os rótulos são irrelevantes. O sofrimento não faz distinções, é comum a todos; portanto o remédio deve poder ser aplicável a todos.

Só aplicado o Dharma dá resultados. Se este é realmente um caminho que nos conduz do sofrimento à paz, então conforme progredimos na prática devemos sentirmo-nos mais felizes no dia-a-dia, estar mais em harmonia, mais em paz connosco próprios. Ao mesmo tempo as relações com os outros devem tornar-se mais pacíficas e harmoniosas. Em vez de juntar às tensões da sociedade, deveremos ser capazes de fazer uma contribuição positiva para aumentar a felicidade e bem-estar de todos. Para percorrer o caminho, devemos viver a vida do Dharma, da verdade, da pureza. O Dharma, praticado correctamente, é a arte de viver.

S. N. Goenka - texto lido na prática Pôr-se a caminho