24 junho 2007

O ponto de partida



A fonte de sofrimento reside em cada um de nós. Quando compreendermos a nossa realidade, reconheceremos a solução para o problema do sofrimento. “Conhece-te a ti mesmo”, todos os sábios o aconselharam. Temos de começar por conhecer a nossa própria natureza; de outra forma nunca poderemos resolver os nossos problemas nem os problemas do mundo.

Mas na verdade, o que é que sabemos sobre nós próprios? Cada um de nós está convencido da sua importância, do seu carácter único, mas o conhecimento que temos de nós mesmos é superficial. A um nível mais profundo, não nos conhecemos verdadeiramente. O Buda examinou o fenómeno do ser humano ao examinar a sua própria natureza. Pondo de lado todas as ideias preconcebidas, explorou a realidade interior e compreendeu que cada ser é um composto de cinco processos, quatro deles mentais e um físico.


MATÉRIA


Comecemos pelo aspecto físico. Este é o mais óbvio, a parte mais aparente de nós mesmos, prontamente apercebida por todos os sentidos. E contudo sabemos tão pouco sobre este corpo. Superficialmente, podemos controlar o corpo – move-se e age de acordo com a vontade consciente. Mas a outro nível, todos os órgãos internos funcionam para lá do nosso controlo, sem o nosso conhecimento. A um nível mais subtil, não sabemos nada, experiencialmente, das incessantes reacções bioquímicas que ocorrem em cada célula do corpo. Mas ainda não é a última realidade do fenómeno material. O aparentemente corpo sólido é na verdade composto de partículas subatómicas e espaço vazio. E mais ainda, até essas partículas subatómicas não têm solidez. A existência de cada uma delas é de menos de um trilionésimo de segundo. As partículas surgem e desaparecem continuamente, existindo e deixando de existir, como um fluxo de vibrações. Esta é a realidade última do corpo, de toda a matéria, descoberta pelo Buda, há 2500 anos atrás.

Através da sua própria investigação, os cientistas actuais reconheceram e aceitaram esta realidade última do universo material. Contudo, estes cientistas não se tornaram pessoas libertas e iluminadas. Por curiosidade, investigaram a natureza do Universo, usando o intelecto e confiando em instrumentos para verificar as suas teorias. Em contraste, o Buda estava motivado não apenas pela curiosidade, mas essencialmente pelo desejo de encontrar uma solução para o sofrimento. O único instrumento que usou para a sua investigação foi a própria mente. A verdade que descobriu não foi o resultado de uma intelectualização, mas da sua experiência directa, e foi por isso que foi libertadora.

Descobriu que o universo era composto de partículas, chamadas em pali kalapas, ou unidades indivisíveis. Estas partículas exibem em infinitas variações as qualidades básicas da matéria: massa, coesão, temperatura e movimento. Combinam-se para formar estruturas que parecem ter alguma permanência. Mas na realidade são todas compostas de minúsculas kalapas, que estão sempre a surgir e a desaparecer. Esta é a última realidade da matéria: um fluxo, uma corrente, constante de ondas de partículas. Este é o corpo a que chamamos “eu”.


MENTE

Ao mesmo tempo que o processo físico, há o processo psíquico, a mente. Embora não possa ser tocado ou visto, parece ainda mais ligado a nós do que o nosso corpo: podemos imaginar uma existência futura sem o corpo, mas não podemos imaginar nenhuma existência sem a mente. Contudo, sabemos tão pouco sobre a mente, e podemos controlá-la tão pouco. Quantas vezes se recusa a fazer o que queremos e faz aquilo que não queremos. O controlo sobre a nossa mente é ténue, mas o inconsciente parece estar totalmente para além do nosso poder de compreensão, preenchido com forças que podemos não aprovar ou desconhecer.

Da mesma forma que examinou o corpo, o Buda também examinou a mente e descobriu que, em termos gerais, consiste em quatro processos: consciência, percepção, sensação e reacção.

O primeiro processo, consciência, é a parte da mente que recebe, o acto de atenção indiferenciada ou cognição. Apenas regista a ocorrência de qualquer fenómeno, a recepção de qualquer dado, físico ou mental. Nota os dados brutos da experiência sem juntar rótulos ou fazer julgamentos de valor.

O segundo processo mental é a percepção, o acto de reconhecimento. Esta parte da mente identifica aquilo que foi notado pela consciência. Identifica, rotula e categoriza os dados em bruto que surgem, e faz avaliações, positivas ou negativas.

A parte seguinte da mente é a sensação. Logo que um estímulo é recebido, a sensação surge, um sinal de que algo está a acontecer. Enquanto o estímulo não é avaliado, a sensação é neutra. Mas logo que um valor é atribuído ao estímulo, a sensação torna-se agradável ou desagradável, dependendo da avaliação.

Se a sensação for agradável, forma-se um desejo para prolongar e intensificar a experiência. Se a sensação for desagradável, surge o desejo de a terminar, de a afastar. A mente reage com gostar ou não gostar. Por exemplo, quando o ouvido está a ouvir normalmente e escutamos um som, a cognição está a funcionar. Quando o som é reconhecido como palavras, com conotações positivas e negativas, a percepção começou a funcionar. Depois, actua a sensação. Se as palavras são de louvor, uma sensação agradável surge. Se as palavras são agressivas, surge uma sensação desagradável. Imediatamente surge uma reacção. Se a sensação é agradável, começamos a gostar, queremos mais palavras de louvor. Se a sensação é desagradável, começamos a detestar, queremos que a agressão pare.

Os mesmos passos ocorrem sempre que um dos outros sentidos recebe um estímulo: consciência, percepção, sensação, reacção. Estas quatro funções mentais são ainda mais efémeras do que as partículas que compõe a realidade material.

De cada vez que os sentidos entram em contacto com um objecto, os quatro processos mentais ocorrem por assim dizer à “velocidade da luz” e repetem-se em cada momento subsequente de contacto. Isto acontece tão rapidamente, contudo, que não nos damos conta do que está a acontecer. Só quando uma reacção em particular se repete durante um longo período de tempo e toma uma forma intensa e acentuada é que a consciência disso se desenvolve a nível consciente.

O que há de mais interessante com esta descrição de um ser humano, não é aquilo que inclui, mas aquilo que omite. Quer sejamos um ocidental ou um oriental, um cristão, um muçulmano, um budista ou um ateísta, ou seja o que for, cada um de nós tem uma segurança congénita que existe um “eu” algures, em nós, uma identidade contínua. Operamos com a assumpção não reflectida que a pessoa que existia há dez anos atrás é essencialmente a mesma pessoa que existe hoje, que existirá daqui a dez anos, que talvez existirá numa vida futura após a morte. Seja qual for a filosofia ou teoria ou crença que defendemos, na verdade vivemos as nossas vidas com a convicção enraizada de que “eu era, eu sou, eu serei”.

O Buda questionou esta asserção instintiva de identidade. Ao fazê-lo, não expunha mais um ponto de vista especulativo para combater as teorias alheias; ele enfatizou muitas vezes que não estava a evidenciar uma opinião, mas simplesmente a descrever uma verdade que ele tinha vivenciado e que cada pessoa comum pode vivenciar. “O iluminado pôs de lado todas as opiniões”, disse o Buda “pois viu a realidade da matéria, da sensação, percepção, reacção e consciência, o seu despontar e o seu desvanecer.” Apesar das aparências, descobriu que cada ser humano é na verdade uma série de acontecimentos separados, se bem que relacionados. Cada acontecimento é o resultado do precedente e sucede-lhe sem intervalo. A progressão constante de eventos dá a ilusão de continuidade, de identidade, mas esta é uma realidade aparente, não a realidade última.

Podemos dar um nome a um rio, mas na realidade é uma corrente de água que nunca pára no seu percurso. Podemos pensar na luz de uma vela como algo constante, mas se olharmos com mais atenção, vemos que é uma chama que surge de um pavio que queima por um instante, para ser substituída rapidamente por uma nova chama, instante a instante. Falamos da luz de uma lanterna, sem pensarmos que na realidade é, como o rio, um fluxo constante, neste caso, um fluxo de energia causado por oscilações de alta-frequência que ocorrem no filamento. A cada momento algo novo surge como produto do passado, para ser depois substituído logo a seguir por algo novo. A sucessão de acontecimentos é tão rápida e contínua que é difícil de discernir. A determinada altura, não podemos dizer que o que acontece agora é o mesmo que o que o precedeu, nem podemos dizer que não o é. Todavia, o processo continua.

Da mesma forma, o Buda compreendeu que uma pessoa não é uma entidade acabada e imutável, mas um processo que flui de momento a momento. Não há realmente um “ser”, mas um fluxo contínuo, um contínuo processo de se tornar. Claro que no dia-a-dia temos de lidar uns com os outros enquanto pessoas de natureza mais ou menos definida e imutável; temos de aceitar a realidade aparente e externa, sob pena de não conseguirmos funcionar. A realidade externa é uma realidade, mas apenas uma realidade superficial. A um nível mais profundo a realidade é que o universo inteiro, animado e inanimado, está num estado contínuo de se tornar – de surgir e desaparecer. Cada um de nós é na verdade uma corrente de partículas subatómicas, com a qual o processo de consciência, percepção, sensação, reacção muda ainda mais rapidamente do que o processo físico.

Esta é a realidade última do eu com o qual todos nós nos preocupamos tanto. Esse é o decurso dos acontecimentos em que estamos envolvidos. Se o pudermos compreender por experiência directa, descobriremos a solução que nos libertará do sofrimento.


S. N. Goenka

texto lido na sessão de prática intensiva de hoje