Aquilo a que se chama “a psique humana” pode ser descrita simplesmente como formada por infinitas camadas mentais que nada mais são do que uma rede de experiências que se sobrepõem e se sustentam umas às outras.
O desenvolvimento espiritual é visto assim como um “descamar” e é frequentemente comparado (é só uma imagem!) ao descascar de uma cebola: cada camada retirada expõe outras camadas, até, idealmente, desvendarmos o núcleo, aquilo que realmente somos, que segundo a tradição budista, é naturalmente puro e luminoso.
Tudo aquilo a que geralmente chamamos negativo, quer a nível das emoções quer a nível dos pensamentos, não pode contaminar esse núcleo, a nossa natureza essencial – mas pode encobri-lo.
Portanto todo o trabalho a que chamamos “espiritual” (embora este seja mais um conceito, e quando avançamos, deixamos de ver diferença entre espiritual e material), todas as práticas e ferramentas utilizadas no budismo e noutras tradições visam atravessar essas camadas, eventualmente perceber que elas não existem por si, que foram construídas, formadas pelas nossas vivências e só são mantidas pela força dos nossos hábitos e crenças. Visam aceder a essa parte “real” de nós mesmos, à nossa sabedoria e compaixão intrínsecas, que na verdade não é “nossa”.
Um dos métodos essenciais para atravessar essas camadas, é o
silêncio. O silêncio permite-nos ver que aquilo que acreditávamos ser sólido é na verdade transparente. Quando acalmamos o nosso tagarelar interior, o nosso núcleo luminoso pode enfim irradiar. Por vezes apenas em pequenos momentos “privilegiados”. Com a prática, tornamo-nos mais e mais familiarizados com a nossa maneira natural de ser e respondemos ao mundo e aos desafios desse lugar que nos fomos habituando a percorrer – que não é porventura “nada de especial”, apenas um lugar mais saudável, criativo e positivo.
Outros métodos podem ser utilizados, eventualmente tantos quantos as pessoas existentes. E a mesma pessoa pode também descobrir que o recitar de um mantra que hoje tem uma ressonância e um significado essencial, amanhã pode perder o sentido, e este ser descoberto no silêncio que contém todos os sons. Ou, pelo contrário, pode descobrir que todos os sons contêm o silêncio, e estar em paz com todos os sons.
De uma certa forma, não importa muito por onde se começa. Damos o passo seguinte, passamos à inspiração seguinte, naturalmente. Se seguimos uma via que dá mais ênfase à
sabedoria, vamos descobrir que ela se manifesta como compaixão. Se seguimos uma via que dá mais ênfase à
compaixão, mais tarde ou mais cedo percebemos que a âncora é a sabedoria.
O método que propus que fosse utilizado nestas sessões das quartas, essencialmente, alia a
compaixão à
sabedoria, o que é um grande desafio. Estar atentos à nossa voz, à nossa verdadeira voz, estar atentos à voz do outro, ouvirmos respeitosamente a voz do outro, conectarmo-nos com esse espaço de abertura mais próximo do que realmente somos, a que alguns chamam “mente de principiante”, em que tudo está disponível, novo e fresco… O método baseia-se ainda no pressuposto, simples, de que temos tudo o que precisamos, que está tudo “aqui”, presente, que é possível parar, debruçarmo-nos e colher esse agora, novo a cada instante… Ao mesmo tempo, se bem que o “trabalho” seja feito em partilha, com os outros, o caminho é também solitário, e as nossas reacções aos outros dizem mais sobre nós do que sobre os outros propriamente ditos.
Às vezes descrevo a sensação de estar num círculo de sabedoria como estar perto de um abismo. Pois é um risco. Ser real e honesto implica dizer coisas que às vezes nunca dissemos antes, ou nunca pensamos antes, ou não assim dessa forma. Mas para que isso seja possível, também é necessário que nos sintamos num
espaço sagrado e seguro. Para isso temos de ter confiança que os outros nos vão ouvir, aceitar-nos, que não vão criticar-nos, que não teremos de enfrentar consequências desagradáveis. Co-criar este espaço seguro é outro desafio importante mas muito poderoso:
Sitting in a circle helps us to fully see each other as peers sharing meaning, creativity, and a common center. I believe the most basic unit of co-intelligent social life is people sitting in a circle listening deeply and speaking from the heart (Sentar num círculo ajuda-nos a ver-nos plenamente como parceiros que partilham sentido, criatividade e um centro comum. Acredito que a unidade mais básica de vida social co-inteligente são pessoas sentadas em círculo, a ouvir profundamente e a falar com o coração - do site
The Co-Intelligence Institute).
Para auxiliar-nos neste processo de co-descobrimento, é necessária alguma estrutura, e concordámos com algumas regras, à semelhança de outros círculos. Aqui estão:
1: Honra o círculo como um espaço e tempo sagrados iniciando-o e finalizando-o com rituais simples. Um ritual cria uma experiência sensorial partilhada e demarca-a da vida de todos os dias. Exemplos de rituais: acender uma vela, acender incenso, respirar profundamente, partilhar um momento de silêncio, ouvir uma meditação guiada…. Pode-se ser tão criativo quanto se quiser.
2: Cria uma coesão ao concordar sobre um tópico ou intenção. Pode ser uma visão do futuro, curar feridas, ir “dentro” para aprender mais sobre nós mesmos, tomar uma decisão ou planear acções que enriquecem e sustentam a nossa vida e a dos outros. Um grupo pode escolher um ponto de vista específico às suas necessidades ou pode permitir que os tópicos surjam, determinados pelas necessidades individuais. Uma pergunta é geralmente uma forma interessante de enquadrar um tema. Essa coesão pode ser representada por um centro físico no meio do círculo, que simboliza a luz do Dharma, objecto específico de estudo do nosso círculo de partilha, à semelhança dos famosos versos de Dogen:
To study the Way is to study the self.
To study the self is to forget the self.
To forget the self is to be enlightened by all things.
To be enlightened by all things is to remove the barriers between one’s self and others.
3: Pede para seres inspirado pelos valores humanos mais elevados, tais como compaixão e verdade, pela sabedoria dos que já caminharam antes de ti e pelas necessidades dos que hão-de vir. Uma pessoa pode falar pelo grupo, ou cada pessoa pode fazer uma invocação pessoal.
4: Expressa gratidão pelas bênçãos e ensinamentos da vida. Reconhece a nossa interdependência com todas as coisas. Em silêncio, ou à vez, agradece essas pequenas e grandes coisas que nos enriquecem e alimentam.
5: Cria uma estrutura para uma participação plena, profunda e sincera. Cada pessoa deve poder falar sem interrupção e sem conversas cruzadas. Sempre que for útil, usar o “testemunho” (talking stick) ou outro objecto com valor simbólico. O objecto pode passar à volta do círculo ou ser retirado do meio para depois ser colocado novamente no centro. Tudo o que for dito deve permanecer confidencial, “dentro do círculo”.
6: Ouve com o coração e serve de testemunha compassiva a outras pessoas no círculo. Para ser uma testemunha compassiva, é necessário prestar atenção ao que é dito sem interpretar, julgar ou tentar “consertar” ou salvar a pessoa que fala. Também significa uma vontade de descobrir algo sobre nós mesmos nas histórias das outras pessoas.
7: Fala com o coração e da tua experiência directa. Quando te sentires movido a falar, fá-lo com atenção e cuidado. Evita uma linguagem abstracta e conceptual e permanece em contacto tanto quanto possível com os teus sentimentos. Ao desenvolver esta capacidade, podes ser levado a partilhar esses sentimentos e a dizer coisas difíceis mas sem “auto-flagelação” e sem acusar os outros.
8: Dá espaço para o silêncio de forma a permitir que a reflexão, a meditação, a intuição e um sentido do sagrado possam emergir com a progressão do grupo.
9: Cada membro pode ser o co-facilitador do processo. Essa pessoa prepara o espaço físico, inicia os rituais de abertura e fecho e facilita o consenso sobre um tópico. Encoraja o processo de crescimento do grupo. Qualquer membro pode designar-se para essa tarefa.
10: Compromete-te a uma relação baseada na confiança e amizade com cada pessoa do círculo. Estende essa atenção e amizade a outras pessoas fora do círculo, à Terra e todas as criaturas, ao aplicar a atitude e capacidades desenvolvidas dentro do círculo, na vida do dia-a-dia.
um abraço a todos
Margarida